Sicredi Novos Horizontes Itaí
Professor Marquinho

Duas histórias de outono

Por Marco Antonio Almeida – professor Marquinho
Imagem ilustrativa

A mania do Calica

Se algum desavisado passasse pela rua Expedicionários na altura da escola “João Michelin” e em parte da avenida próxima à pista de skate, acharia que a prefeitura fazia ali uma limpeza pública especial. Não se via um papel de bala no chão. Qualquer pessoa se surpreenderia ao saber que em um perímetro de um quarteirão a limpeza diária das ruas e calçadas era feita por “um figura”, desses que só Itaí produz. A prefeitura municipal nada tinha com isso.

Carlinhos, o “Calica”, tinha como mania ou hobby catar as “sujeiras” das proximidades da sua casa. Era sempre em silêncio e na maioria das vezes sem camisa que a tarde ele catava papéis, lixo, embalagens, garrafas, enfim, o que encontrava de sujeira grossa ele punha em sacolas plásticas e levava para o quintal da sua casa, eram os recicláveis.

Seu semblante era o de alguém que fazia tudo aquilo como estivesse em uma missão e a serenidade que ele me passava quando eu o via não me permitia ver aquilo de uma forma pejorativa ou pequena.

A vida é passageira. E são nossos atos que marcam essa passagem, mesmo os mais prosaicos, os mais simples. Carlinhos se foi. Dessa para melhor como se falam por aí. Vitimado por um desses tipos de câncer que atingem muita gente pelo mundo afora, essa doença infalível e indecente. Mas... Sua lembrança virá sempre que eu passar ali pelas imediações do “campão” e ao olhar as calçadas e as ruas ver o estado que elas ficaram sem sua presença.

A sua ausência é testemunhada na sujeira incólume que os caminhões de limpeza não conseguem limpar.

 

Um poema...

Tempestade

Éramos três...

Eu, Sergio e Cláudio, enfrentando a chuva naqueles dias de dezembro.

Éramos fortes, persistentes, espertos e ríamos muito de tudo aquilo.

A água pesada e avassaladora aos poucos destruía nossas fortalezas.

E contrariando qualquer lógica aquilo era gosto. Irmanados por um sentimento inexplicável de prazer, continuávamos construindo as barragens que seguravam as águas até certo ponto.

Nunca esqueço um tombo do Sergio, muito menos do que se seguiu. Cláudio que se encontrava agachado, juntando terra, imediatamente se levantou e correu para ajudá-lo.

Ver Cláudio dando a mão ao amigo assumiu para mim uma dimensão épica. Descobri naquele momento o sentido da tal solidariedade. Até então havia certa competição entre nós. Não queríamos nem saber um do outro. O outro era o outro.

Ali de repente nos transformamos em três amigos de verdade.

Corri reerguer a barragem do Cláudio. E Sergio mostrava aos berros o joelho esfolado. O barulho do temporal não nos deixou ouvi-lo.

O fim da chuva quase sempre era seguido de um silêncio triste. Às vezes coincidia com o anoitecer. Exaustos, voltávamos para nossas casas.

Lembro-me do banho demorado; quase sempre era acabar o banho e me deitar; dormia o sono dos justos. Muitas vezes nem jantava.

Aos doze anos, fazer açudinho na calçada da rua de casa quando chovia era nossa pequena aventura e hoje quando olho para esse passado, bate aquele sentimento inexplicável de saudade.

Saudade. Essa palavra faz-me lembrar de Sergio.

Ele agora é frentista de um posto de gasolina aqui da cidade. Vez em quando o vejo andando rápido, cabeça para o alto. Andar firme de pai de família. Com responsabilidade de erguer e reerguer muitas barragens. De vencer obstáculos e continuar sempre se levantando de cada tombo.

E o Cláudio?

Dia desses o vi. Está formado doutor. Um advogado criminal que com certeza, é capaz de dar a mão quando necessário.

Assim é a vida.

Alguns momentos nos marcam mais que outros. Seja por um gesto, seja pelo sentimento que ficou ou mesmo por algo que não tem explicação.

Esse tempo. Esse dezembro. Essa brincadeira que inventamos por não sobrar muito que fazer nos dias de chuva levou-me a escrever e ver de outra forma essa chuva que cai agora lá fora. Os gritos que só eu ouço. A saudade que só eu sinto.