
Problemas começaram em 2020, com os primeiros passos para o isolamento que viria logo com os primeiros casos. Registros também foram feitos com relação à vacina. Estudo com participação de hospitais de Botucatu comprova ineficácia da cloroquina em casos moderados
TV TEM/Arquivo
O tratamento precoce e o “não” ao isolamento social deram o tom entre os chamados negacionistas durante a pandemia da Covid-19. Quando a vacina contra o vírus chegou, as falas emblemáticas contra a imunização continuaram, fato que, conforme especialistas ouvidos pelo g1, ajudou a agravar os quadros de casos e mortes durante a maior crise sanitária mundial do século.
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A pandemia da Covid-19 assolou o mundo e deixou marcas eternas em famílias, profissões, na economia, ciência e saúde. Por isso, o g1 traz uma série de reportagens para falar sobre um dos períodos mais difíceis enfrentados pela humanidade. Confira as outras reportagens:
Luto e saudade fazem parte do convívio diário de famílias que perderam parentes: ‘Ainda em processo de recuperação’
Uso de máscara, álcool em gel e cardápios lavável e digital são ações herdadas por comerciantes
Carros dentro de shopping, música no portão e hospitais improvisados foram medidas adotadas
Para muitos municípios brasileiros, incluindo os do interior de São Paulo, 2021 foi o ápice dos casos de infectados e de mortes pela Covid. No entanto, os problemas começaram um ano antes, em 2020, com os primeiros passos para o isolamento que viria logo com os primeiros casos. O negacionismo também soou alto, em especial quando foram disponibilizadas as primeiras doses da vacina.
Em um hospital de Sorocaba (SP), uma das ações que mais marcaram o negacionismo durante a pandemia ocorreu logo após as primeiras doses serem aplicadas, ainda em 2021, envolvendo um casal que se infectou com a doença.
O homem usou todos os recursos que tinha na época para pagar o convênio de um hospital particular para a esposa, enquanto ele ficou em um leito público. Por aversão à vacina, ele decidiu não se imunizar e não resistiu à doença.
Um profissional que trabalhava no hospital público e preferiu não se identificar relembrou o que o paciente disse na época: “Durante o seu tratamento, ele dizia que se arrependia em não ter tomado a vacina e não ter deixado a esposa tomar também. E, infelizmente, ele veio a óbito”.
O caso é só mais um entre tantos.
Medicamentos ineficazes e fake news
Infectologista Camila Ahrens fala sobre impactos do negacionismo na divulgação
Divulgação
A infectologista Camila Ahren, do Hospital São Marcelino Champagnat, atuou tanto na rede pública quanto na privada e afirma que o negacionismo durante a pandemia de Covid foi “um dos maiores desafios enfrentados pela ciência e pela saúde pública”.
“Desde o início, vimos a circulação de informações falsas e a resistência às diretrizes de prevenção baseadas em evidências. Esse comportamento impactou diretamente a evolução da pandemia, resultando na adoção de medidas ineficazes e no atraso na implementação de estratégias realmente protetivas”, afirma.
A especialista lembra que cidades que incentivaram tratamentos sem comprovação científica, como o chamado “kit Covid” (composto por medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina), “além de negligenciarem medidas preventivas como o distanciamento social, uso de máscaras e vacinação em massa, tiveram uma pior resposta à pandemia, com índices de letalidade superiores à média nacional”.
“Isso mostra que a falta de embasamento científico nas decisões políticas e sanitárias teve um custo muito alto, medido em vidas perdidas. O negacionismo criou um ambiente de desconfiança na população, minando a adesão às estratégias de controle da pandemia. Muitas pessoas, influenciadas por discursos embasados na desinformação disseminada durante esse período, deixaram de seguir as recomendações médicas corretas.”
Ainda conforme a especialista, a adoção de medicamentos ineficazes gerou uma falsa sensação de segurança, levando muitas pessoas a se exporem ao vírus sem os devidos cuidados.
“Além disso, a resistência à vacinação atrasou a imunização em massa, permitindo que variantes mais agressivas do vírus se disseminassem, aumentando o número de casos graves e óbitos. Quando a ciência é ignorada, o impacto na saúde pública é severo.”
Lição e educação científica
A especialista lembra também que a pandemia ensinou que a ciência salva vidas e que a desinformação pode ser tão perigosa quanto o próprio vírus.
“Uma das lições mais importantes é a necessidade de fortalecer a comunicação entre profissionais de saúde, instituições científicas e a população, combatendo notícias falsas com informação de qualidade. Além disso, ficou evidente que o planejamento estratégico baseado em evidências é essencial para a contenção de crises sanitárias. Países e cidades que seguiram protocolos científicos rigorosos tiveram um impacto menor da pandemia. No Brasil, vimos como a falta de uma resposta unificada e coerente agravou a crise.”
Camila Ahrens também lembra que o negacionismo dentro da pandemia alerta para a importância da educação científica.
“Precisamos investir mais em educação para que as pessoas compreendam a relevância da vacinação, das medidas de prevenção e do tratamento baseado em evidências. Esse conhecimento não é importante apenas para esta pandemia, mas para futuras emergências sanitárias.”
Taxas de letalidade
Um dos principais índices que medem a gravidade da pandemia está na taxa de mortalidade e letalidade. Sorocaba tem índice de 2,8%. A cidade, ao longo da pandemia, teve 3.313 óbitos, conforme o painel Coronavírus da Fundação Seade. É maior que o índice do estado, de 2,7%, e 60% maior que o índice do Brasil. A cidade ocupa a 23ª colocação com o maior número de mortes do país.
Mirandópolis, outra cidade que apresentou ações negacionistas ao longo da pandemia, apresenta taxa de letalidade ainda mais alta. Com 121 mortes, a cidade tem índice de letalidade de 5,2%. É mais que o dobro do índice do Brasil, e quatro vezes maior que o índice mundial.
Já Porto Feliz, que também teve ações ostensivas com relação ao chamado tratamento precoce, registrou 205 mortes, com taxa de letalidade de 1,4%. Nesse caso, a taxa é menor que as taxas do estado e do Brasil.
As cidades de Bauru, Paraguaçu Paulista, Jundiaí, Salto e Itu estão na lista dos municípios que apresentaram baixo índice de isolamento social no início da pandemia. Em alguns casos, como em Bauru, houve a necessidade de intervenção do Judiciário contra medidas que afetavam o isolamento.
Mas a cidade de Araraquara, por exemplo, que adotou medidas mais restritivas com relação a vários temas dentro da pandemia, incluindo o isolamento social, tem taxa de letalidade equivalente à de metade do Brasil e equiparada ao percentual do mundo, que é de 0,9%.
Mesmo com esses números e atos considerados negacionistas, os dados sobre letalidade no estado de São Paulo são liderados por outras cidades. Inclusive, a maior taxa é da cidade de Sarutaiá, na região de Itapetininga, que registrou 153 casos com 23 mortes, e índice de letalidade de 14,74%, bem acima dos apresentados por Sorocaba, Mirandópolis e Porto Feliz.
Já a cidade com o melhor resultado é Queiroz, na região de Bauru. O município registrou 1.062 casos e três mortes.
Há ainda outro cenário com relação às mortes. É quando a comparação é feita por grupo de habitantes. No Brasil, são 33 mortes por cada 10 mil habitantes. No estado de São Paulo, são 41 mortes para o mesmo grupo. Levando em consideração os mesmos 10 mil habitantes, Sorocaba tem 45 mortes, Mirandópolis 43 e Porto Feliz 36.
Sorocaba (SP) registrou mais de 3 mil mortes ao longo da pandemia
Pâmela Ramos/g1
Negligências, conquistas e lições
Camila Bicalho, médica infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP
Divulgação
Camila Bicalho, médica infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP, afirma que é preciso lembrar que o negacionismo existe há muito tempo, mas que se popularizou na década de 1980 e essa situação ficou ainda mais forte durante a pandemia.
“Tem uma revisão sistemática publicada na Nature, ainda em 2021, e vários outros trabalhos posteriormente publicados, que [mostram que] a hidroxicloroquina e a cloroquina não só são ineficazes para o uso da Covid, como para a profilaxia da Covid, e que elas também aumentaram o risco de morte entre as pessoas que fizeram a utilização dessas medicações. Em contrapartida, aquelas pessoas que tomaram a vacina morreram menos.”
“Isso mostra que, realmente, essa postura de negligenciar, acreditar em tratamentos curadores e tratamentos milagrosos realmente contribuiu para que muitas pessoas morressem em decorrência da Covid-19”, afirma.
Ela também comentou sobre a principal lição deixada pela pandemia:
“Acho que a principal lição que a gente recebe é o fato de que a gente só saiu de quase 3 mil mortes por dia no Brasil, para que nos dias de hoje a gente possa voltar a trabalhar presencialmente, se encontrar com as pessoas e ir para o carnaval graças à ciência. Então, a gente tem que pensar que foram centenas, milhares talvez de laboratórios ao redor do mundo trabalhando para desenvolver uma vacina que fosse, não só uma vacina, mas desenvolver vacina e medicamentos que fossem capazes de combater a Covid-19.”
A médica também comentou sobre a atuação dos profissionais da saúde, no momento em que tratamentos alternativos eram apresentados.
“A gente tinha, por um lado, autoridades que negligenciavam a Covid, diziam que tinham kits e drogas curadoras, e, por outro lado, a gente tinha os profissionais da saúde, geralmente sobrecarregados, com medo de adoecer e muitas vezes recorrendo até a tratamento psiquiátrico para tratar ansiedade e depressão.”
Ações negacionistas
Prefeitura de Sorocaba divulgou ‘estudo’ que apontou ‘99% de eficácia’ do kit Covid, mas postagem foi apagada horas depois da repercussão
Reprodução/Instagram
Em Sorocaba, a prefeitura chegou a divulgar um “estudo” preliminar que apontava 99% de eficácia do tratamento precoce contra a Covid-19, que não tem comprovação científica e que a Associação Médica Brasileira disse que deveria ser banido. Após muitas críticas, a postagem foi apagada das redes sociais e o texto foi alterado.
De acordo com o texto original publicado, o “estudo” foi feito pela Secretaria de Saúde do município e monitorou 123 pacientes com sintomas da doença após dez dias do início do tratamento com os medicamentos azitromicina e/ou ivermectina. À época, a prefeitura afirmou que, desse total, 122 pessoas foram curadas em casa e um morreu porque procurou a unidade de saúde quando “já estava com um quadro de saúde moderado”.
A distribuição de kits também era incentivada pelo então prefeito de Mirandópolis, Everton Sodário (PSL). Em uma de suas muitas postagens sobre o tema, o prefeito afirma que determinou a criação de kits para a distribuição à população. Na lista, estavam cloroquina e azitromicina, comprovadamente ineficazes contra o coronavírus.
“Determinei ao Departamento de Saúde de Mirandópolis a criação de kits com cloroquina e azitromicina. Os pacientes que apresentarem sintomas do vírus chinês, caso queiram, sairão com o kit do posto, de acordo com protocolo do Ministério da Saúde”, disse, na época.
Em Porto Feliz, o kit precoce era quase regra nas unidades de saúde. Esse kit de remédios que incluía a hidroxicloroquina começou a ser distribuído no começo de abril de 2020, logo no início da pandemia. Ele era direcionado a pacientes com sintomas leves de coronavírus em dois postos de saúde e no pronto-socorro do município.
Especulações e ponderações
Rosana Paiva, de Sorocaba (SP), médica especialista em saúde
Arquivo pessoal
Rosana Maria Paiva dos Anjos, infectologista e especialista em saúde publica e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde PUCSP, fala sobre as medidas, incluindo a distribuição do chamado “kit precoce”.
“Passados cinco anos com pandemia, casos graves ainda ocorrem dentro de situação endêmica da doença, com a identificação de surtos locais. O papel de cada medida de controle tem sido tema de artigos científicos e opiniões de especialistas e estudiosos gerando controvérsia, o que não é incomum no campo da medicina”, diz.
“Hoje, na era da medicina, baseada em evidências, artigos e análises com muitos vieses [erros induzidos no modelo do estudo] são debatidos pela sociedade, o que é bem-visto, pois os erros e acertos fazem as pessoas buscarem esclarecimentos e a verdade das ocorrências.”
A especialista também faz algumas ponderações. A primeira sobre os kits distribuídos nas cidades: “A correlação feita em estudo de grupos de indivíduos, aqui no chamado Modelo Ecológico, tem forte viés, pois a pessoa que morreu pode não ter tido acesso ao medicamento, uma vez que não sabemos exatamente o período de disponibilidade, quem, quantas pessoas receberam o kit e nem sobre as orientações de uso que cada um recebeu. Para confirmar qualquer uma das hipóteses possíveis, necessitaríamos de uma série de informações mais precisas.”
A segunda questão é sobre a vacina: “Na população geral, temos uma porcentagem de pessoas que recebeu a vacina, mas não sabemos se quem morreu por Covid-19 estava ou não vacinado e, se sim, com quantas doses. Para comprovar, seria necessário termos estudos nos modelos de ensaios clínicos randomizados e controlados ou pelo menos de estudos prospectivos ‘delineamento de coorte’, que seriam a base para Revisões Sistemáticas e Metanálises. No ano de 2021 e até acompanhamos alguns estudos nestes modelos estruturados mais robustos foram desmontados e os motivos não explicados.”
Prefeituras
As prefeituras de Sorocaba, Mirandópolis e Porto Feliz, que adotaram medidas com relação ao kit Covid, foram procuradas pela reportagem para falar sobre a pandemia.
A Prefeitura de Sorocaba disse que, ao longo da pandemia, a cidade “respeitou todos os protocolos necessários de segurança e também contribuiu para a mitigação de impactos sociais à população com repasses à camada que mais necessitava”.
“Desde o início do advento, o município sempre monitorou e buscou a disponibilização da vacina como o método de prevenção mais seguro, eficaz e gratuito, prevenindo assim as formas graves da doença e evitando os óbitos. A pandemia do coronavírus foi um evento inédito, de magnitude mundial, que desafiou todos os países e, com isso, Sorocaba sempre buscou alternativas para que a população pudesse sofrer menos consequências possíveis durante o período.”
As prefeituras de Mirandópolis e Porto Feliz não retornaram os questionamentos.
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