Canções feitas de sangue

Imagem ilustrativa

Maria Bethânia, em “Drama”, do irmão Caetano, canta que “ limpo num pano de prato, as mãos sujas do sangue das canções”. Pois é. Nossa MPB, sempre tão rica e variada, está cheia de canções que falam de sangue. Se espremer, esguicha. Então sai de perto que selecionei algumas para vocês:

 

1 – “IRACEMA” (1956) – o samba de Adoniran Barbosa fala de Iracema, jovem atropelada em plena Av. São João, em SP. Dela restaram apenas as meias e os sapatos, que o noivo, desconsolado, guardou de lembrança. Os retratos do casal, ele perdeu. Seria só mais um sambinha paulista, se Elis não tivesse regravado e transformado em clássico.

2 – “DOMINGO NO PARQUE” (1968) – O triângulo amoroso da canção deu B.O: o feirante José encontra a namorada Juliana na roda-gigante com o amigo pedreiro João e mata os dois a facadas! Clássico de Gilberto Gil valorizado pelo arranjo vanguardista do maestro Rogério Duprat e backing vocals dos Mutantes: Sérgio, Arnaldo e Rita.

3 – “CORAÇÃO DE LUTO” (1960) – Garotinho inocente voltando da escola é informado que sua casa pegou fogo e  sua mãe morreu torrada lá dentro. A galera não perdoou: rebatizou o sucesso de “Churrasquinho de Mãe” e assim ele ficou conhecido até hoje. O autor e intérprete, o gaúcho Teixeirinha, não gostou muito não.

 

4 – “CORAÇÃO MATERNO” (1937) – Mais coração. Periguete pede prova de amor ao namorado: que ele mate a mãe e traga o coração da velha para ela. Ele assim o faz, mas no trajeto de volta tropeça e derruba o órgão sangrento no chão. Para espanto de todos, o coração cria voz e fala: “Te perdoo, meu filho querido”. – Sucesso de antanho de Vicente Celestino que Caetano regravou na Tropicália (1968).

5 – “O MENINO DA PORTEIRA” (1955) – Menininho do sítio espera boiadeiro todo dia na porteira. Boiadeiro gosta da atenção. Hum, não sei não… Bem, boi chifrudo fura mortalmente o moleque esvaído em sangue e o boiadeiro, desolado, nunca mais passa na porteira. Linda história de amor, que nos dias de hoje seria certamente condenada por seu sub-texto. Gravada originalmente pela dupla Luizinho e Limeira ganhou um cover do cantor Sérgio Reis nos Anos 80 do século passado.

“6 – FAROESTE CABOCLO” (1987) – A letra mais comprida da MPB nacional conta a história do duelo entre o herói João de Santo Cristo e o  traficante Jeremias, inventor da “rockonha” (sic) . Os dois morrem e a namorada de João, Maria Lúcia, também. Sangrento, hein? E ainda transmitido ao vivo para o país todo, segundo Renato Russo, o autor, que gravou tudo isso com sua banda, a mítica Legião Urbana.

 

7 – “RONDA” (1953) – Mulher desesperada persegue o amante farrista pela noite paulistana e promete matá-lo, caso o encontre “jogando dadinhos e bilhar com outras mulheres”, as de vida fácil, evidentemente. A neurótica stalker promete “cena de sangue num bar, da Avenida São João”, se o pula-cerca for achado. A sinistra letra de Paulo Vanzolini foi primeiro gravada por Inezita Barroso e depois imortalizada por Maria Bethânia em 1978.

 

 

8 – “NOSTRADAMUS” (1980) – Eduardo Duzek abre a janela de seu apartamento e constata que o mundo acabou: pessoas correndo, edifícios ruindo, enfim, o caos. Sem maconha e sem cocaína, liga para seu traficante para poder suportar tudo com um teco: nada. Para piorar, quando Edu vai à cozinha encontra a empregada, Carlota, morta caída no chão. Ele implora por um café, já que o mundo está acabando mesmo. Debochado e único exemplo de letra distópica em nossa farta MPB. Que venham outras.

9- “CONSTRUÇÃO” (1971) – A maior música da Música Popular Brasileira, com suas rimas  terminadas em proparoxítonas, nos conta a história do operário que cai dos andaimes de prédio em pleno sábado, “atrapalhando o tráfego”. Não bastasse essa tragédia sindical, Chico Buarque (autor) emenda tudo com “Deus Lhe Pague”, com versos sobre moscas varejeiras, que costumam cobrir cadáveres. Que Chico é gênio é fato consumado e que essa canção é a melhor de todas também.

 

10 – “SERAFIM E SEUS FILHOS” (1971) de Ruy Maurity. Nos Anos 30 do século passado, em pleno agreste baiano, Serafim e seus filhos: João Quebra-Toco, Mané Quindim, Lourenço e Maria formavam um bando que atacava, matava e roubava viajantes no sertão. Quando Lourenço quer pular fora, a família o mata. Desencarnado e transformado em lobisomem, Lourença mata de susto os dois irmãos, faz a irmã traíra virar mulher- da- vida e tortura o pai até que ele morra sete vezes “até abrir caminho pro Paraíso”. O cover da canção, gravado por Zezé di Camargo e Luciano trouxe essa história sobrenatural e sangrenta aos ouvidos de todos.

 

 

CARLINHOS BARREIROS:

É professor, jornalista e escritor. Atuou em Piraju nos jornais “Folha de Piraju”, “Observador” e “Jornal da Cidade”, sempre como cronista ou crítico de Cinema/Literatura. Publicou o livro de contos “Insânia: O Lado Escuro da Lua” (esgotado). Em 2006, foi o primeiro colocado no Concurso de Poesias, Contos e Crônicas da FAFIP (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Piraju) com o conto “Sade no Sertão”.

Atualmente, revisa os originais de seu livro de contos ainda inédito, “Freak Show”. Mora em Piraju, onde contribui eventualmente com a imprensa local com crônicas/contos e escreve para os blogues “Língua de Trapo” e farolnoticias.com.br, ambos da cidade de Itaí.

Seu ensaio sobre a contracultura em Piraju nos Anos 60 e 70 do século passado: “Eu, Carlinhos Barreiros, drogado e prostituído” foi publicado com sucesso no blogue da USP (Universidade de São Paulo), do jornalista Luciano Maluly, ficando no top dos Mais Lidos por várias semanas.

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